Estando agora livre dos laços que o prendiam aos desejos terrenos, em seu desprezo pelo mundo, Francisco abandonou a cidade natal e procurou um lugar onde pudesse ficar a sós, alegre e despreocupado. Aí na solidão e no silêncio poderia ouvir as revelações secretas de Deus. Ia dessa forma pela floresta, alegre e cantando em francês os louvores do Senhor, quando dois ladrões surgiram do cerrado e caíram sobre ele. Ameaçaram-no e perguntaram quem ele era, mas ele respondeu corajosamente com as palavras proféticas: "Sou o arauto do Grande Rei". Bateram nele e o lançaram numa fossa cheia de neve, dizendo-lhe: "Fica por aí, miserável arauto de Deus". Francisco esperou que fossem embora, saiu da fossa, alegre, recomeçando com mais ânimo ainda sua canção em honra do Senhor (S.Boaventura - Legenda Maior, Cap.2, 5).

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

A PERFEITA ALEGRIA

O tempo estava péssimo, a tarde frigidíssima, intérmina a estrada de Perúgia a Porciúncula, e São Francisco e Frei Leão deviam percorrê-la toda, Frei Leão adiante, São Francisco atrás, açoitados pelo vento, túnicas esburacadas e rasgadas, cheios de cansaço e de fome que lhes auentavam o frio. No meio dessa jornada, São Francisco começa um meditação dialogada, que era a um tempo ensinamento e oração.
- Frei Leão.
- Pronto, meu pai.
- Escreve qual é a verdadeira alegria. Embora os frades menores dessem em todo o mundo grande exemplo de santidade e de edificação, não estaria nisto a perfeita alegria.
Caminharam algum tempo em silêncio e depois de novo se fez ouvir a voz de Francisco:
- Ó Frei Leão, embora os frades menores recebessem de Deus imensas graças, curando enfermos e fazendo milagres, até mesmo ressuscitando mortos de quatro dias, escreve que não estaria nisto a perfeita alegria. - Andaram mais algum tempo silenciosos. Depois São Francisco chamou em voz mais alta:
- Ó Frei Leão, se os frades menores soubessem todas as línguas, todas as ciências e todas as Escrituras, se profetizassem, revelando as coisas futuras e os segredos das consciências, escreve que não estaria nisto a perfeita alegria
Silêncio. Frei Leão começava a esquecer o frio, absorvendo-se no pensamento do mestre e perguntando a si onde iria encontrar a alegria perfeita, quando São Francisco tornou, sempre em voz mais alta:
- Ó Frei Leão, conquanto soubessem os frades pregar tão bem que convertessem todos os fiéis a fé de Cristo, escreve que não estaria nisto a perfeita alegria. E se chegasse um mensageiro e dissesse que todos os mestres de Paris haviam entrado na Ordem, escreve que não estaria nisto a perfeita alegria. E se nela também entrassem todos os prelados de além Alpes, arcebispos e bispos e ainda o rei de França e o rei da Inglaterra, escreve que não seria isto verdadeira alegria.
Durando este modo de falar por umas duas milhas, Frei Leão, que não sabia mais o que pensasse, perguntou:
- Pai, peço-te em nome de Deus que me digas onde se encontra a perfeita alegria.
Explicou, então, São Fracisco:
- Chego a Santa Maria dos Anjos todo molhado, enregelado, enlameado, esfaimado, com os sincelos da barra da túnica a me baterem nas pernas, fazendo escorrer sangue das feridas. Depois de haver eu batido e chamado muito, vem o irmão porteiro e pergunta: "Quem és?" Respondo: "Frei Francisco". Ao que ele retruca: "Pois vai-te, que isto não é hora de viajar; não entrarás". E continuando eu a bater, vem ele fora enfurecido e me toca a poder de insultos e bofetadas, dizendo: "Vai-te, és simplório e idiota, não pretendas vir para o nosso meio; somos tantos e tais que não temos necessidade de ti". E tudo isto eu suporto pacientemente, com alegria e com amor. Ó Frei Leão, escreve que nisto se encontra a perfeita alegria.
Frei Leão já não respondia e não mais sentia fomw, nem frio, nem cansaço, tão grande era a sua admiração. E prosseguiu São Francisco;
- Se depois, obrigado pela fome, pelo frio e pela noite, entre lágrimas insisto: "Por amor de Deus, dá-me pousada por esta noite", e ele me responde: "Não o farei, dirigi-te ao hospital dos Crucíferos", e tornando fora com um bastão nodoso, me agarra pelo capuz, me joga no chão, me revira na neve, me bate sem piedade; se tudo isto suporto com paciência e com júbilo, pensando nos sofrimentos de Cristo bendito, ó Frei Leão, escreve que aqui e nisto é que se acha a perfeita alegria. E ouve agora a conclusão: o maior dos dons do Espírito Santo é o de nos vencermos a nós mesmos e o de suportarmos de boa mente, por amor de Cristo, sofrimentos, injúrias, opróbios e necessidades, porque de todos os outros dons de Deus nós não nos podemos gloriar porque não são nossos, mas dele; nas cruzes das tribulações, porém, nós o podemos, porque são nossas.

São Francisco de Assis, 4ª Edição - Maria Sticco - Ed. Vozes - 1074

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